Fabiana Caso - texto de apoio da exposição Um cadáver vai ao cinema (setembro de 2023). 


Jazigo

Uma sinfonia de britadeiras, calçadas trituradas e vozes altas das turbas contaminavam o ar. Os corpos inanimados não pareciam se importar, mas no fundo eram ritmados por aqueles agudos maquinais. Pedaços de sonhos alienígenas e beijos dourados do que se quebrara em doismileum fotogramas despedaçados, as cadeiras de veludo vermelho mofando em um bazar de igreja, a sombra da cortina descompassada. Comodoros incendiados queimando suspiros infantis, na Avenida São João apenas inalações de grandezas perdidas. Memórias de um glamour encoberto pela fuligem, pelos corpos chapados na paisagem urbana distópica. Daquele pós-tudo de rolos compressores, onde as lágrimas haviam sido soterradas à inexistência por não caberem no concreto despedaçado e de alma cinzenta. O tecnicolor que não rimava mais com aquele modo débil do que era sobrevivente do centro da cidade. Enterraram o sonho sob os escombros de alguma esquina fétida.

Da Galeria Metrópole, o enorme letreiro de caracteres arredondados como lápide. Do que tantas retinas experimentaram ao desenrolar de histórias mirabolantes sobre telas de dimensões majestosas, o Vazio vedado por portas titânicas. Comoções náufragas. O jardim não respirava mais sorrisos e as reflexões do que se pensava do filme… que projetava a Vida? Ali jaziam desejos de romances feéricos e venturas doces entre as folhas, em verde imitação de um dos ângulos do caleidoscópio obsoleto.

Marrocos ocupados de vidas e novas urgências onde não havia espaço ou brecha para o território de fábulas cinematográficas. Bijous reabertos em luz de novas fantasias. Pipoca moderna. São Paulo implodia em fragmentos a seiva do que se passava em boemia anciã de poetas movidos a jazz e programas familiares suntuosos. Anticinema de fachadas ocas que trancavam o onírico a sete chaves, rolos imagéticos apagados pelo tempo, quinas que projetavam estilhaços, acinzentados como os corpos concretos teleguiados por pequenas telas e pelo som de britadeiras.





Luísa Kiefer - texto em ocasião da mostra Ling Apresenta (primavera, 2022).


Arrisco dizer que muito daquilo que nos cerca hoje, seja no âmbito dos espaços físicos – essa coisa um pouco padronizada, modelada conforme o gosto do tempo, os objetos, a decoração –, seja nas questões mais subjetivas – excesso de estímulos, de mensagens, de imagens e de referências –, está presente na pintura de Talita Hoffmann. Fosse apenas isso, suas pinturas seriam uma sobreposição desordenada. Mas, não são. Talita tem um filtro, que é aquilo que a faz ser artista, e tem humor. Ela tem uma certeza, por certo subjetiva, mas é o que a permite trabalhar com segurança. É difícil de colocar em palavras, mas está lá, fazendo o seu papel a cada imagem que a artista observa e resolve tornar pintura.

Para a construção da parede que faz parte do projeto Ling Apresenta, Talita, que geralmente parte de um banco de imagens que ela coleciona, resolveu trabalhar de forma diferente. Convidou o público a colaborar enviando fotografias feitas nas dependências do Instituto Ling. Poderia ser qualquer imagem: um detalhe, uma parede, um canto escondido, um revestimento, um plano aberto, enfim qualquer foto que revelasse um pedaço do próprio lugar. A pintura seria construída, então, a partir dessas imagens.

Com a parede em branco, começam as escolhas. As fotografias são transferidas por um processo muito simples. Projetor ligado, imagem projetada, Talita vai riscando com um lápis, escolhendo as partes que quer mostrar. Aí está um ponto de atenção: não é porque recebeu a fotografia, que ela precisa ser usada. Ela seleciona aquilo que a interessa enquanto artista, que faz sentido dentro da composição que ela deseja criar. Há, o tempo inteiro, um pensamento pictórico e compositivo que se impõe, que direciona as escolhas e determina o que entra e como entra na parede. Assim, uma forma pode ser subitamente interrompida. Uma linha que descia reta, desenhando uma janela, de repente se transforma em pequenas ilhas.

Das linhas de lápis, Talita passa para a tinta. Tudo começa pelo fundo. Grandes campos de cor que preenchem perspectivas, que levam o olhar e constroem a primeira camada da pintura. São áreas bem delimitadas, com formas específicas, que dialogam com as imagens que virão por cima. Conforme a pintura avança e a parede se completa, vários ângulos, arestas, objetos, mobiliário e elementos arquitetônicos vão tomando conta do espaço. De uma forma, o olho salta para a seguinte. A artista encaixa uma quina de parede com o início de um corrimão, o fim de um teto com o começo de um chão.

Essa camada, mais gráfica, de desenhos feitos com linhas, sobre as manchas de cor do fundo, comunica também sobre a trajetória de Talita enquanto designer gráfica e ilustradora. É, para mim, precisamente aqui que o humor característico das outras obras da artista aparece: na escolha desses detalhes, dos objetos e em suas sobreposições e relações. Há, em toda a sua composição, diversos caminhos para o observador percorrer.

As imagens recebidas, que não tinham uma delimitação temporal – poderiam ser de qualquer época –, compõem, sem querer, uma espécie de histórico do Instituto Ling. É possível identificarmos obras de arte que já passaram pela galeria e outras que por lá vivem, como parte do acervo permanente. Em um canto, o olho atento encontrará uma meta-obra, um canto da parede fotografado e enviado para a artista, e que de imagem da obra voltou a ser obra.

Em um primeiro momento, relacionei tudo isso a uma ideia de labirinto. Aos poucos, fui me dando conta que a poética de Talita fala, para mim, muito sobre o nosso jeito de viver. Pulando de uma coisa para outra, de um ambiente para outro, sobrepondo conversas e assuntos, passando de uma janela para outra no computador, colecionando abas e referências, imagens – físicas, virtuais e imaginadas –, tudo permeado pela velocidade acelerada do cotidiano.

Porém, a pintura de Talita não é acelerada. Pelo contrário, ela desacelera o tempo com suas composições. Requisita a nossa atenção, encurrala o olhar em um acúmulo de formas. Só parando diante da obra podemos esmiuçar aquilo que forma o todo. Eu encontrei um pouco de mim mesma, talvez o espectador encontre outras coisas.





Paulo Kassab Jr. - texto sobre a exposição Areia Movediça (novembro de 2015).


O processo de urbanização e industrialização tardio em países como o Brasil trouxe características únicas à infraestrutura urbana destes locais e, ao mesmo tempo, criou uma estética quase surrealista em grandes cidades. Casas abandonadas, prédios modernos, shoppings e museus convivem como se fossem colagens de imagens sobre o que restou de antigas construções.

Em suas pinturas, Talita Hoffmann estabelece uma relação constante com a mudança nos espaços ao seu redor ou em cidades que passaram por fortes transformações. Planos e ambientes tomados por colagens, linhas e cores. A presença dos personagens é percebida na ausência, o sigilo e a desordem insinuam o barulho. O contraste é flagrante. A mostra da existência pelo abstrato. O concreto invade a tela em paletas de cores e conta histórias pela arquitetura. Mesmo em espaços vazios escondem-se narrativas.

Em um universo com distintas influências, das cores e traços da arte naif, passando pelas fotografias de Walker Evans durante a depressão nos EUA e pelo design gráfico, a exposição “Areia Movediça” evidencia que as ações do homem e as transformações na cidade - construções e desconstruções - são, em sua maioria, vestígios de incidentes, que percebem o silêncio subsequente ao ruído.





Lucas Ribeiro - texto sobre a exposição Cidade no Interior (abril de 2013).


Em sua exposição individual na galeria LOGO, a jovem artista gaúcha Talita Hoffmann apresenta obras inéditas que pela primeira vez relacionam sua pintura no tempo e no espaço. Se em seus trabalhos anteriores as cenas desoladas e apocalípticas retratadas eram irrastreáveis, quase alienígenas, agora Talita encontrou uma associação direta com um momento histórico específico: a Grande Depressão americana dos anos 30. Usando como ponto de partida as fotos de Walker Evans que cristalizaram o período no imaginário popular, Talita transpõe para a sua dimensão inventada as notórias paisagens de beira de estrada, com suas construções precárias e placas comerciais pintadas à mão.

Como na música folk do sul dos Estados Unidos, que conectou a artista com as fotos de Evans, suas pinturas exaltam a simplicidade das coisas e a sinceridade das pessoas, projetando uma experiência que ela própria, como habitante de centros urbanos, não vivenciou. Nesse experimento de falsa nostalgia, Talita mantém-se fiel aos seus ideais estéticos, produzindo imagens agradáveis e ao mesmo tempo estranhas com tinta acrílica sobre tela ou papel. Apesar da sanidade, as composições improváveis e figuras anormais criadas com precisão pela artista possibilitam relacionar sua obra com a de artistas realmente outsiders e insanos, como Henry Darger.